Prezados leitores.
Diz a Resolução do Conselho
federal de Medicina (CFM) n. 1.488/1998:
Art. 12. O médico de
empresa, o médico responsável por qualquer programa de controle de saúde
ocupacional de empresa e o médico participante do serviço especializado em
Segurança e Medicina do Trabalho não podem atuar como peritos judiciais,
securitários, previdenciários ou assistentes
técnicos, nos casos que envolvam a firma contratante e/ou seus assistidos
(atuais ou passados).
Me parece muito clara e bem
intencionada essa redação. Especialmente falando da proibição da atuação dos
Médicos do Trabalho e “Médicos Examinadores” (MTs/MEs) como assistentes técnicos das empresas que atuem
ou tenham atuado, o que o CFM quis, em última instância, foi não permitir
que estes profissionais usassem dados obtidos dos trabalhadores, quando de
consultas médicas (que pressupõem confiança total entre médicos e examinados),
à favor das empresas, em situações processuais. Além disso, esse artigo também
buscou resguardar a imparcialidade e independência dos MTs/MEs na conflituosa
relação entre empregadores e empregados.
Mas o que é mais grave no aspecto ético (e moral)? MTs/MEs atuando
como assistentes técnicos para empresas que atuem ou tenham atuado; ou atuando
diariamente, dentro das empresas, de forma a sempre prestigiar os interesses
patronais?
Bem sabemos que, pelo menos na
teoria, os MTs/MEs deveriam gozar de plena independência e imparcialidade, com
relação aos empregadores e aos empregados. Diretivas para isso não faltam. Cito
algumas.
Diz o Código Internacional de Ética para Profissionais de Medicina do
Trabalho (Comissão Internacional de Saúde Ocupacional – ICOH):
As obrigações dos
profissionais de Medicina do Trabalho incluem: a integridade na conduta
profissional, a imparcialidade e a proteção
da confidencialidade e do segredo no que se refere à privacidade dos trabalhadores.
Os profissionais de
Medicina do Trabalho são profissionais especializados que devem gozar da máxima independência profissional no exercício de
suas funções.
Na mesma esteira, vem o Código de Conduta do Médico do Trabalho:
São deveres do Médico do
Trabalho:
(3) Exercer suas
atividades com total independência
profissional e moral, com relação ao empregador e ao empregado.
Mas será mesmo que essa tem sido a prática dos MTs/MEs? Com exceções, infelizmente não. Aliás, tem sido comum a
verificação de profissionais que, por exemplo:
- não
solicitam necessários exames complementares para os trabalhadores, com o
objetivo único de desonerar as empresas;
- deixam
de contemplar evidentes riscos em seus PPRAs/PCMSOs/LTCATs, etc., porque “isso
poderia prejudicar a empresa lá na frente”;
- mesmo
não sendo verdade, não configuram insalubridade / periculosidade em seus
laudos técnicos, evitando com que os empregadores paguem os respectivos
adicionais; e por aí vai...
Nesse contexto, falemos um pouco
sobre como a própria legislação interfere diretamente na conduta desses
profissionais.
Muitos MTs/MEs trabalham dentro
das fábricas, indústrias, etc., compondo o Serviço Especializado em Engenharia
de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT), em obediência à Norma
Regulamentadora n. 4 (NR-4). Dessa forma, são empregados dessas grandes
empresas. E qual o conceito de empregado? Conforme o art. 3 da CLT, o empregado
possui 4 características simultâneas: subordinação
ao empregador, habitualidade e
pessoalidade no emprego, e ganhos
financeiros em contrapartida pelos serviços prestados.
Começo chamando a atenção para o
primeiro requisito citado da relação de emprego: subordinação ao empregador. Como os MTs/MEs podem ser subordinados
à empresa e independentes em suas condutas, ao mesmo tempo? Como podem ser
submissos ao empregador e imparcial na relação empregador x empregado?
Impossível?! Talvez. Especialmente pelo fato de que essa subordinação está
sendo comprada. Sim! Um outro requisito da relação de emprego é a onerosidade, isto é, os MTs/MEs recebem
dinheiro pelo trabalho prestado na condição de empregados, ou seja, na condição
de submissos e subordinados. Por isso, Polack dizia que "a medicina no modo de produção capitalista é a medicina do
capital" (POLACK, J.C. La medicine du Capital. Paris, Francois
Maspero,1971).
Cabe então a pergunta: até onde
deve ir a subordinação dos MTs/MEs dentro das empresas? Deve repercutir apenas sobre questões do
trabalho (como, por exemplo, jornada de trabalho, etc.), ou deve adentrar nas
condutas médicas? O que temos visto (e aqui falo sem nenhum juízo de valor, mas
apenas constatando a ocorrência dos fatos) é que alguns MTs/MEs atuam como verdadeiros
e contínuos defensores dos interesses patronais, mesmo em suas condutas médicas.
Os que não o fazem, certamente que sofrem repetidos assédios para assim
fazerem, isto, quando infelizmente, não são dispensados do emprego por essa
hipotética “falta de subordinação”.
Esse funcionamento está tão
sedimentado, que o próprio CFM, através da mesma Resolução n. 1.488/1998 (com a
qual começamos esse texto), também faz parecer confundir a figura dos MTs/MEs
com a figura da própria empresa.
Vejamos: é sabido, conforme o
art. 22 da Lei 8.213/1991 (combinado com art. 169 da CLT), que é a empresa quem
deve emitir a CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho) toda vez que houver
acidente de trabalho ou suspeita de doença relacionada ao trabalho. Dos entes
que podem emitir a CAT, a empresa é a
única que pode ser multada caso não o faça, o que não deixa dúvida quanto a
sua maior responsabilidade nessa tarefa. No entanto, a Resolução do CFM n.
1.488/1998, assim coloca:
Art. 3° - Aos médicos que trabalham em empresas,
independentemente de sua especialidade, é atribuição: (IV) Promover a emissão de Comunicação de Acidente do Trabalho, ou outro
documento que comprove o evento infortunístico, sempre que houver acidente ou moléstia
causada pelo trabalho. Essa emissão deve ser feita até mesmo na suspeita de
nexo causal da doença com o trabalho. Deve ser fornecida cópia dessa
documentação ao trabalhador.”
Verificamos aqui, que o próprio CFM, responsável pela fiscalização do exercício ético dos MTs/MEs,
atribui como responsabilidade desses profissionais, algo que a própria Lei
8.213/1991 colocou de forma clara como responsabilidade maior das empresas. Em
outras palavras, podemos inferir que, por vezes, o CFM observa os MTs/MEs como
se própria empresa fossem, sugerindo assim também, uma indivisibilidade de
condutas entre esses 2 atores, o que, em última análise, também significa ausência
de independência entre MTs/MEs e empregadores.
Talvez por isso que a Lei
605/1949, ao falar sobre os MTs/MEs, referiu a estes profissionais como sendo “médicos da empresa”. Por tudo que vimos
(e vemos diariamente na prática), essa parece uma boa denominação. Muitos
médicos estão mais preocupados com os interesses das empresas, do que com os
interesses dos trabalhadores.
No entanto, “quem nunca pecou,
que atire a primeira pedra”. A conjuntura é, de fato, complexa para os MTs/MEs.
Sendo empregados (submissos e subordinados) das empresas, como podem se manter
100% independentes destas? Contratualmente, eles estão à serviço dos
empregadores. Muitos que, de forma muito bem intencionada, tentaram ser totalmente
independentes e imparciais chegaram a ser dispensados do próprio emprego, e certamente
refletiram: “de que vale um médico
independente e imparcial sem ter sustento próprio, e sem ter de quem cuidar?”
Não é fácil! MTs/MEs são vilões e vítimas de um sistema é cruel. Caetaneando,
é “a força da grana que ergue e destrói
coisas belas”.
Enquanto o contexto for este,
ainda vejo com muito bons olhos (embora com fortes críticos) a existência de uma
legislação “pesada”, muito bem detalhada, e coercitiva no que tange as normas
de saúde no trabalho. E que as pesadas sanções pelo seu não cumprimento desestimulem os empregadores e MTs/MEs da prática omissiva. Explico: pela longa e conflituosa história da relação
empregador x empregado, não creio que haverá um tempo em que as empresas
cuidarão de seus funcionários por mero altruísmo e boa intenção. Isso é muito
improvável (pra não dizer impossível). Quando os empregadores investem em saúde
do trabalhador (ainda que de forma precária), é por determinação legal, passiva
de punição pelo não cumprimento. Nesse cenário, que a legislação seja mesmo aplicável,
completa, fiscalizada e rígida. Desta forma, os MTs/MEs serão obrigados a
cuidar dos trabalhadores, pois só assim estarão defendendo verdadeiramente os interesses
patronais. É o cuidado para com os trabalhadores, não como nobre foco
principal, mas como “efeito colateral” de uma legislação severa. Mas sendo
eficiente, que seja assim.
Enfim, enquanto não chegamos no
mundo ideal, torço para que os MTs/MEs, ainda que tropecem, jamais desistam de
sua autonomia, independência e imparcialidade, e que Deus dê a todos estes
profissionais sabedoria e, principalmente, “jogo de cintura” (vulgo “rebolation”).
Torço também, para que as
empresas que assediam e fazem retaliações com os independentes e imparciais MTs/MEs
sejam banidas do mercado (esse é o meu sincero desejo – infelizmente, certamente
inatingível).
À vontade para os comentários.
Um forte abraço a todos!
Marcos Henrique Mendanha
E-mail: marcos@asmetro.com.br
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