terça-feira, 25 de setembro de 2012

MÉDICOS DO TRABALHO SÃO (IM)PARCIAIS?


Prezados leitores.

Diz a Resolução do Conselho federal de Medicina (CFM) n. 1.488/1998:

Art. 12. O médico de empresa, o médico responsável por qualquer programa de controle de saúde ocupacional de empresa e o médico participante do serviço especializado em Segurança e Medicina do Trabalho não podem atuar como peritos judiciais, securitários, previdenciários ou assistentes técnicos, nos casos que envolvam a firma contratante e/ou seus assistidos (atuais ou passados). 

Me parece muito clara e bem intencionada essa redação. Especialmente falando da proibição da atuação dos Médicos do Trabalho e “Médicos Examinadores” (MTs/MEs) como assistentes técnicos das empresas que atuem ou tenham atuado, o que o CFM quis, em última instância, foi não permitir que estes profissionais usassem dados obtidos dos trabalhadores, quando de consultas médicas (que pressupõem confiança total entre médicos e examinados), à favor das empresas, em situações processuais. Além disso, esse artigo também buscou resguardar a imparcialidade e independência dos MTs/MEs na conflituosa relação entre empregadores e empregados. 

Mas o que é mais grave no aspecto ético (e moral)? MTs/MEs atuando como assistentes técnicos para empresas que atuem ou tenham atuado; ou atuando diariamente, dentro das empresas, de forma a sempre prestigiar os interesses patronais?

Bem sabemos que, pelo menos na teoria, os MTs/MEs deveriam gozar de plena independência e imparcialidade, com relação aos empregadores e aos empregados. Diretivas para isso não faltam. Cito algumas.

Diz o Código Internacional de Ética para Profissionais de Medicina do Trabalho (Comissão Internacional de Saúde Ocupacional – ICOH):

As obrigações dos profissionais de Medicina do Trabalho incluem: a integridade na conduta profissional, a imparcialidade e a proteção da confidencialidade e do segredo no que se refere à privacidade dos trabalhadores.
Os profissionais de Medicina do Trabalho são profissionais especializados que devem gozar da máxima independência profissional no exercício de suas funções.

Na mesma esteira, vem o Código de Conduta do Médico do Trabalho:

São deveres do Médico do Trabalho:
(3) Exercer suas atividades com total independência profissional e moral, com relação ao empregador e ao empregado.

Mas será mesmo que essa tem sido a prática dos MTs/MEs? Com exceções, infelizmente não. Aliás, tem sido comum a verificação de profissionais que, por exemplo:
  • não solicitam necessários exames complementares para os trabalhadores, com o objetivo único de desonerar as empresas;
  • deixam de contemplar evidentes riscos em seus PPRAs/PCMSOs/LTCATs, etc., porque “isso poderia prejudicar a empresa lá na frente”;
  • mesmo não sendo verdade, não configuram insalubridade / periculosidade em seus laudos técnicos, evitando com que os empregadores paguem os respectivos adicionais; e por aí vai...

Nesse contexto, falemos um pouco sobre como a própria legislação interfere diretamente na conduta desses profissionais.

Muitos MTs/MEs trabalham dentro das fábricas, indústrias, etc., compondo o Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT), em obediência à Norma Regulamentadora n. 4 (NR-4). Dessa forma, são empregados dessas grandes empresas. E qual o conceito de empregado? Conforme o art. 3 da CLT, o empregado possui 4 características simultâneas: subordinação ao empregador, habitualidade e pessoalidade no emprego, e ganhos financeiros em contrapartida pelos serviços prestados.

Começo chamando a atenção para o primeiro requisito citado da relação de emprego: subordinação ao empregador. Como os MTs/MEs podem ser subordinados à empresa e independentes em suas condutas, ao mesmo tempo? Como podem ser submissos ao empregador e imparcial na relação empregador x empregado? Impossível?! Talvez. Especialmente pelo fato de que essa subordinação está sendo comprada. Sim! Um outro requisito da relação de emprego é a onerosidade, isto é, os MTs/MEs recebem dinheiro pelo trabalho prestado na condição de empregados, ou seja, na condição de submissos e subordinados. Por isso, Polack dizia que "a medicina no modo de produção capitalista é a medicina do capital" (POLACK, J.C. La medicine du Capital. Paris, Francois Maspero,1971).

Cabe então a pergunta: até onde deve ir a subordinação dos MTs/MEs dentro das empresas?  Deve repercutir apenas sobre questões do trabalho (como, por exemplo, jornada de trabalho, etc.), ou deve adentrar nas condutas médicas? O que temos visto (e aqui falo sem nenhum juízo de valor, mas apenas constatando a ocorrência dos fatos) é que alguns MTs/MEs atuam como verdadeiros e contínuos defensores dos interesses patronais, mesmo em suas condutas médicas. Os que não o fazem, certamente que sofrem repetidos assédios para assim fazerem, isto, quando infelizmente, não são dispensados do emprego por essa hipotética “falta de subordinação”.

Esse funcionamento está tão sedimentado, que o próprio CFM, através da mesma Resolução n. 1.488/1998 (com a qual começamos esse texto), também faz parecer confundir a figura dos MTs/MEs com a figura da própria empresa.

Vejamos: é sabido, conforme o art. 22 da Lei 8.213/1991 (combinado com art. 169 da CLT), que é a empresa quem deve emitir a CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho) toda vez que houver acidente de trabalho ou suspeita de doença relacionada ao trabalho. Dos entes que podem emitir a CAT, a empresa é a única que pode ser multada caso não o faça, o que não deixa dúvida quanto a sua maior responsabilidade nessa tarefa. No entanto, a Resolução do CFM n. 1.488/1998, assim coloca:

Art. 3° - Aos médicos que trabalham em empresas, independentemente de sua especialidade, é atribuição: (IV) Promover a emissão de Comunicação de Acidente do Trabalho, ou outro documento que comprove o evento infortunístico, sempre que houver acidente ou moléstia causada pelo trabalho. Essa emissão deve ser feita até mesmo na suspeita de nexo causal da doença com o trabalho. Deve ser fornecida cópia dessa documentação ao trabalhador.”

Verificamos aqui, que o próprio CFM, responsável pela fiscalização do exercício ético dos MTs/MEs, atribui como responsabilidade desses profissionais, algo que a própria Lei 8.213/1991 colocou de forma clara como responsabilidade maior das empresas. Em outras palavras, podemos inferir que, por vezes, o CFM observa os MTs/MEs como se própria empresa fossem, sugerindo assim também, uma indivisibilidade de condutas entre esses 2 atores, o que, em última análise, também significa ausência de independência entre MTs/MEs e empregadores.

Talvez por isso que a Lei 605/1949, ao falar sobre os MTs/MEs, referiu a estes profissionais como sendo “médicos da empresa”. Por tudo que vimos (e vemos diariamente na prática), essa parece uma boa denominação. Muitos médicos estão mais preocupados com os interesses das empresas, do que com os interesses dos trabalhadores.

No entanto, “quem nunca pecou, que atire a primeira pedra”. A conjuntura é, de fato, complexa para os MTs/MEs. Sendo empregados (submissos e subordinados) das empresas, como podem se manter 100% independentes destas? Contratualmente, eles estão à serviço dos empregadores. Muitos que, de forma muito bem intencionada, tentaram ser totalmente independentes e imparciais chegaram a ser dispensados do próprio emprego, e certamente refletiram: “de que vale um médico independente e imparcial sem ter sustento próprio, e sem ter de quem cuidar?”

Não é fácil! MTs/MEs são vilões e vítimas de um sistema é cruel. Caetaneando, é “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”.

Enquanto o contexto for este, ainda vejo com muito bons olhos (embora com fortes críticos) a existência de uma legislação “pesada”, muito bem detalhada, e coercitiva no que tange as normas de saúde no trabalho. E que as pesadas sanções pelo seu não cumprimento desestimulem os empregadores e MTs/MEs da prática omissiva. Explico: pela longa e conflituosa história da relação empregador x empregado, não creio que haverá um tempo em que as empresas cuidarão de seus funcionários por mero altruísmo e boa intenção. Isso é muito improvável (pra não dizer impossível). Quando os empregadores investem em saúde do trabalhador (ainda que de forma precária), é por determinação legal, passiva de punição pelo não cumprimento. Nesse cenário, que a legislação seja mesmo aplicável, completa, fiscalizada e rígida. Desta forma, os MTs/MEs serão obrigados a cuidar dos trabalhadores, pois só assim estarão defendendo verdadeiramente os interesses patronais. É o cuidado para com os trabalhadores, não como nobre foco principal, mas como “efeito colateral” de uma legislação severa. Mas sendo eficiente, que seja assim.

Enfim, enquanto não chegamos no mundo ideal, torço para que os MTs/MEs, ainda que tropecem, jamais desistam de sua autonomia, independência e imparcialidade, e que Deus dê a todos estes profissionais sabedoria e, principalmente, “jogo de cintura” (vulgo “rebolation”).

Torço também, para que as empresas que assediam e fazem retaliações com os independentes e imparciais MTs/MEs sejam banidas do mercado (esse é o meu sincero desejo – infelizmente, certamente inatingível).

À vontade para os comentários.

Um forte abraço a todos!

Marcos Henrique Mendanha
Twitter: @marcoshmendanha
Instagram: marcoshmendanha

Um comentário:

  1. Ola Marcos! Ao mesmo tempo que parabenizo o senhor pelas belas reflexoes que nos faz ter, agradeço por fornecer tamanha informacao para nosso dia a dia.

    adentrei uma empresa ha pouco tempo e me deparei com uma situacao interessante: um colaborador, à uma determinada epoca anterior à minha chegada, alegou que sua funcao exercida repetidamente causou problemas em seu ombro... o medico anterior decidiu afasta-lo da funcao exercida, oferecendo funcao sem esforco, alem de fisioterapia e tratamento farmacologico, como forma de reabilitacao profissional (creio eu) ou por no momento nao vizualizar nexo causal... passados algumas sessoes de fisioterapia motora (20 sessoes), o mesmo alega ainda dor. Nesse preambulo, ao tomar conhecimento do caso (por ser novo na empresa) resolvi apurar o estado de saude do colaborador e apos coleta de dados, inclusive com exames complementares, encaminharei o mesmo ao INSS para apuracao de nexo causal. tomada esta conduta, devo eu aguardar parecer pericial do INSS e, se procedente, emitir a CAT ou devo emiti-la mesmo assim? saliento que no momento presente, em que vejo o colaborador e o avalio, nao visualizo nele fundamento da queixa... ha, na minha avaliacao, a chamada "inconsistencia entre relato e exame fisico" por diversos motivos: seja a postura do mesmo adotada durante o inquerito medico, seja a ausencia de sinais clinicos que indiquem sub-uso do membro, enfim...

    certo de um esclarecimento em relacao a essa duvida (que deve ser a de muitos), agradeco toda e qualquer forma de manifestacao em prol do desenvolvimento da nossa profissao.

    grato desde ja!

    ResponderExcluir

Os comentários só serão publicados após prévia análise do moderador deste blog (obs.: comentários anônimos não serão publicados em nenhuma hipótese).