terça-feira, 9 de outubro de 2012

CFM PROÍBE, MAS LEI MANDA. A QUEM SEGUIR?


Prezados leitores.

Acabo de ter ciência do Parecer n. 26/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM), cuja ementa assim coloca: “não é eticamente aceitável a solicitação de exames de monitoramento de drogas ilícitas, em urina e sangue, para permitir acesso ao trabalho, pois isto contraria os postulados éticos.”

No texto, o parecer é enfático: “os exames exigidos pela empresa por ocasião da admissão devem ser aqueles previstos na legislação específica, visando sempre a avaliação da capacidade laborativa do empregado, caracterizando-se discriminatória qualquer exigência de realização de exames que extrapolem os requisitos técnicos para a função a ser exercida. Em resposta à solicitação, não é cabível a realização de exames em funcionários de empresas para detectar a presença de álcool e/ou drogas, por se tratar de postura discriminatória.

Não tenho a menor dúvida de que a intenção do CFM, ao proferir esse parecer, foi nobre. Vislumbrou-se, acima de tudo, proteger qualquer trabalhador de alguma possível atitude discriminatória, por parte dos empregadores.

Lindo no papel, mas na prática, a coisa não é tão simples assim...

Imaginemos um motorista profissional! Conforme a nova redação do art. 235-B da CLT (instituída pela Lei 12.619/2012), é dever do motorista profissional submeter-se a teste e a programa de controle de uso de droga e de bebida alcoólica, instituído pelo empregador, com ampla ciência do empregado. E complementa: “a recusa do empregado em submeter-se ao teste e ao programa de controle de uso de droga e de bebida alcoólica serão consideradas infração disciplinar, passível de penalização nos termos da lei.”

Convenhamos: essa lei é necessária, e merece louvores. Não se trata de uma simples discriminação, pelo contrário: o cunho maior é a proteção (do trabalhador e de tantas outras pessoas que podem ser vitimadas). Se fosse apenas discriminação avaliar o estado de um motorista, o "bafômetro" já estaria proibido. Mas graças a Deus, não está. A regra é simples: um direito individual jamais pode se sobrepor a um direito coletivo. Exemplificando: um sujeito pode beber (é um direito individual que lhe assiste), mas não pode dirigir alcoolizado (pois estaria afrontando um direito coletivo: de ter um trânsito mais seguro, além do fato de estar colocando em risco a própria vida - o bem maior a ser resguardado por nossa legislação).

Voltando ao assunto inicial, e agora? Sabendo que os Médicos do Trabalho / “Médicos Examinadores” são quem solicitam testes de drogas, a quem eles devem seguir: ao Parecer n. 26/2012 do CFM ou à CLT? E se optarem por serem éticos, não solicitarem nenhum teste, e algum motorista profissional venha a provocar um grave acidente em virtude do uso de drogas em sua jornada de trabalho?  Vale lembrar, que o art. 132 do Código Penal, diz que “expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto ou iminente pode acarretar pena de detenção de 3 meses a 1 ano, se o fato não constituir crime mais grave”.  Por terem sido éticos e não terem solicitado o teste de droga pertinente, estariam então os Médicos do Trabalho / “Médicos Examinadores” cometendo um crime? Complicado, não?!

Com imenso respeito às opiniões divergentes, acredito que a CLT e o Código Penal devem prevalecer sobre o nobre parecer emitido pelo CFM. Por quê? Pois, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, os primeiros possuem status de Lei Ordinária, e estão hierarquicamente superiores às normativas expedidas pelo CFM, como o respeitável Parecer n. 26/2012.

Para ilustrar e justificar melhor meu posicionamento, vejamos:

·  num caso hipotético, se alguma provável sindicância do CFM concluir que um médico não cometeu nenhuma infração ética, mas por outro lado, num processo judicial, que trate do mesmo assunto, o juiz entender que o registro desse médico deva ser cassado. Nesse caso, qual decisão prevalecerá: a do CFM ou a do juiz?

·  De maneira inversa: se uma provável sindicância do CFM cassar o exercício profissional de um determinado médico, mas por outro lado, num processo judicial, que trate do mesmo assunto, o juiz o absolver esse médico de qualquer acusação. Mais uma vez, que decisão prevalecerá: a do CFM ou a do juiz?

Como nas 2 perguntas a resposta foi a mesma (prevalecerá a decisão do juiz), para mim, dúvidas não restam que, em casos de lamentáveis e inconciliáveis conflitos normativos, mesmo procedendo todas as tentativas pertinentes de preservação da intimidade do paciente, e fazendo sempre o uso do bom senso, é melhor obedecer as regras do juiz (no caso, a CLT e o Código Penal), do que as eventuais regras divergentes estabelecidas pelo CFM, por uma simples questão hierárquica. Ressalto aqui a extrema importância das regras confeccionadas pelo CFM. Esse texto enfoca uma rara situação onde poderá haver conflito entre a norma ética (editada pelo CFM) e o texto legal (contido em leis hierarquicamente superiores).

Pra finalizar, vale salientar que muitos exames toxicológicos negativam-se (tornam-se normais) pouco tempo após a interrupção do uso da substância em análise. Isso é verdade. No entanto, na minha opinião, por questões legais e preventivas, esse argumento é pobre para justificar a não realização de tais exames de forma indistinta.

À vontade para os comentários.

Um forte abraço a todos.

Que Deus nos abençoe.

Marcos Henrique Mendanha
Twitter: @marcoshmendanha
Instagram: marcoshmendanha

Matéria na Folha de São Paulo relacionada a esse tema: 

http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/1197665-dobra-o-numero-de-empresas-que-exigem-antidoping-aos-funcionarios.shtml

6 comentários:

  1. Boa discussão. Só para enriquecer. Imagine se o novo projeto de lei que impede a demissão por justa causa de dependentes químicos, apresentado na mídia esta semana, fosse aprovado.

    http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/TRABALHO-E-PREVIDENCIA/427424-PROJETO-ACABA-COM-DEMISSAO-SUMARIA-DE-DEPENDENTE-QUIMICO.html

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  2. Olá Prof. Marcos.

    Mais uma vez, Parabéns. Não sei bem quem disse a primeira frase, mas todas lhe cabem muito bem: "Das qualidades, a coragem é a que diguinifica o homem", "A coragem é a primeira virtude do estadista. Sem ela, a coragem, todas as outras virtudes desaparecem na hora do perigo." (Winston Churchill), "A coragem é a primeira das qualidades humanas, porque é a qualidade que garante as demais." (Winston Churchill). Tenha certeza que vc não está sozinho na sua luta diária.
    Abraço,
    Rubens Cenci Motta

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  3. Obrigado pelas carinhosas palavras, Dr. Rubens!
    Um forte abraço.
    Marcos

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  4. Celso de Lacerda Azevedo Neto16 de outubro de 2012 às 15:02


    Olá Prof. Marcos
    Conforme a nova redação do art. 235-B da CLT (instituída pela Lei 12.619/2012), é dever do motorista profissional submeter-se a teste e a programa de controle de uso de droga e de bebida alcoólica, instituído pelo empregador, com ampla ciência do empregado. Nesse caso a empresa poderia obrigar os seus motoristas a realizar o teste do "Bafometro" regularmente e antes que o mesmo iniciasse a sua jornada de trabalho?
    Quanto ao controle do uso de drogas que exames com bom custo beneficio poderiam ser realizados?

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  5. Olá Prof. Marcos. Sugeri acesso à sua mensagem e recebi esta resposta:
    Caro Professor
    Muito oportuna sua mensagem, que realmente nos estimula a refletir sobre nossa responsabilidade, não só como médicos e peritos, mas também como cidadãos.
    Tudo muito bonito no papel, mas trabalhar ao lado de alguém que tem seu estado de consciência alterado por uso voluntário de substâncias psico-ativas é muito perigoso - para dizer o mínimo.
    Alguém quer entrar em um avião pilotado por um drogado?
    Ou quer ser operado por um médico "doidão"?
    O usuário de drogas é um doente, mas isso não lhe dá o direito de colocar em risco as pessoas e coisas ao seu redor.
    Realmente, a liberdade é um bem supremo e inalienável, mas implica em responsabilidade - sempre.
    Atenciosamente
    SCPN
    SJC/SP

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  6. Dr. Marcos! Fiquei feliz ao ler seu texto. Será que encontrei um interlocutor? Faço curso de Política e Cidadania em São José dos Campos. Há uma Portaria (MTE/GSI n10, de 10/07/2003 'DOU 24/07/2003) em que o Ministro Jacques Wagner recomenda a promoção à prevenção do uso do álcool e de outras drogas nos locais de trabalho. Especificamente, estudo o assunto há cerca de dois anos. Defendo a existência de Programas de combate ao álcool e às drogas nos ambientes de trabalho. Mas o assunto é envolto em preconceitos e falsos pudores. A RBAC 120 trouxe um alento a esse tipo de combate. Para mim, um grande passo. A lei 12.619/2012 também trouxe muito ao país. No entanto o CFM se nega a defender a saúde com o intuito provável de encobrir uma realidade brasileira que deve ser motivo de vergonha. Não consegui a prevalência do consumo de drogas por parte de médicos na região sul ou sudeste. Imagino que, se divulgarem isso, cai governo. (Como pessoa fora da área médica e da área do Direito, permito-me certas liberdades de interpretação.) De fato, a realidade me mostrou coisas nada boas. Por isso envolvi-me nesse estudo. Elaborando uma proposta para a cidade de SJC criar um programa piloto na área de saúde, lembrei-me da proibição do CFM. Decidi procurar essa proibição e achei seu texto. Foi melhor assim. Pretendia que a cidade explorasse a experiência de mais de dez anos com empresas como a Embraer que adotam Programas de combate às drogas, com advogados dessas empresas que acabam conhecendo o problema a prendendo a lidar com ele. Ia pensar como me aproximar de médicos para uma campanha contra essa decisão. Mas talvez melhor do que isso, tenha sido descobrir sua pessoa.
    O preconceito é terrível. Tentei me aproximar do grupo da UNIFESP mas quando souberam de minha intenção em alterar a legislação para ter maior controle sobre o que a OIT chama de "dever de vigilância", fui rejeitada. Foi assim em vários locais... Tenho estudado as convenções (155 e 161) da OIT que serviram de base para os Programas de combate às drogas, lá nos anos 80, nos setores sensíveis: transporte, habitação e saúde. Até agora sequer entramos nos setores sensíveis. Mal começamos na aviação... Ainda bem, pelo menos.
    Gostaria de conhecer melhor seu trabalho e até de saber o que o senhor sugere como estratégia para incorporar um plano piloto numa cidade e, a partir dele, ampliar esse plano.
    Maria Beatriz Marcondes Helene

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